"Nem Deus afunda o Titanic"
São raros os momentos em que eu gostaria de ser assinante do Globo, mas tenho que reconhecer que gostaria de ter acesso a uma matéria que saiu hoje, mostrando o crescimento do endividamento do brasileiro. Uma reportagem tão interessante, mas tão interessante, que foi comentada na coluna do Pedro Porfírio. Na verdade queria ler a pesquisa original, mas infelizmente esse tipo de informação nunca é publicada. Todo mundo quer ficar na sombra, morrendo de medo de, no futuro, serem acusados de terem errado. Mal do século: covardia.
Pelo que o Porfírio leu, os brasileiros gastaram 1 trilhão e meio de reais em 2007 e vão gastar 15% a mais em 2008. Enquanto isso, o total pago em salários no país foi de apenas 700 bilhões de reais. Isso significa que mais da metade do que gastamos não foi pago! Mas é com base nessa confiança do consumidor (a qual aqui chamaremos de ilusão consumista) que as projeções de crescimento econômico são feitas. E é por causa desses números que investidores do mundo inteiro estão jogando dinheiro no Brasil. Dentre esses investidores, há também brasileiros, que antes mantinham maior parte de seus recursos (obtidos sabe-se como) em mercados como o estadunidense, que agora se mostra menos vantajoso. Talvez seja adequado analisar o que foi que aconteceu de errado por lá.
A economia dos EUA passou por crises substanciais em 80, com a alta do petróleo, 2001, com ao ataque de Osama Bin Laden às torres gêmeas em Manhattan, e agora, desde 2006, amarga uma crise de crédito. O colapso do sistema financeiro nos EUA vem da incapacidade do mercado em pagar os empréstimos tomados, em especial para comprar imóveis. Para contornar as crises anteriores, o Fed, banco central estadunidense, chegou a baixar os juros básicos a 1%. Empresas de crédito tinham acesso a montanhas de dinheiro a custo baixíssimo, e precisavam de passar esse dinheiro para frente, mas como? Simples! Emprestando dinheiro a longuíssimo prazo, juros altos, prestações pequenas, para famílias de baixa renda. Até chegaram a apelidar seus clientes: NINJAS (No Income, No Job, no ASsets - sem renda, sem emprego, sem recursos, ou lastro).
Jogaram dinheiro na mão dos NINJAS, e o mercado imobiliário, mais do que nunca, disparou. Passei por um desses condomínios em Long Island. Casas imensas, que custavam acima de um milhão de dólares, sendo compradas por famílias que ganhavam 100 mil dólares por ano. Claro que tinham 30 anos para pagar, mas e os juros? Juros baixos, 5% ao ano. Sobre o valor total, no nosso exemplo, 50mil dólares ao ano. Consequentemente, muitos desses compradores estavam pagando somente os juros do seu finaaciamento, incapazes de fazer mais que isso. Mas o estadunidense tem uma fé na economia que me assusta. Sempre são otimistas, tudo vai melhorar, e continuavam morando na casa que era mais cara do que podiam pagar, na expectativa de que mais cedo ou mais tarde conseguiriam um emprego melhor.
Como a economia se baseia justamente no que o consumidor acredita, essa ainda ia bem, até que o mundo inteiro começou a parar de acreditar no dólar. O petróleo disparou, alimentos mais caros, empregos em queda, e quem só ganhava o suficiente para pagar os juros da sua dívida, agora tem que devolver a casa para o banco, sem levar consigo um tostão de tudo que pagou. O que acontece com o mercado imobiliário? Vai ao encontro do Titanic, que também afundou por ser grande demais para mudar de rota. E quem paga a conta? Os bancos? Os investidores? Esses têm dinheiro demais, e optam por riscos. Perder e ganhar são faces da moeda que jogam no ar. Mas quem perdeu sua casa não tem riscos calculados a correr...
Pelos dados de consumo no Brasil, me parece ser esse o nosso modelo de "crescimento sustentado". A nossa miopia, de aceitar crescimendo econômico como desenvolvimento social vai continuar nos custando caro. Custando caro a quem? A você e e a mim, que não temos riscos calculados a correr. Nós que não somos entrevistados na televisão, e que não somos parte da elite protegida pelo governo, pela constituição e pela mídia. Mas que continuamos a trabalhar para o senhor feudal, comprando o pão na sua vendinha. E quando chega o final do mês, ele faz as contas, temos que trabalhar mais uma semana para pagar as contas do mês passado.
Claro que não estamos nessa situação HOJE, mas os números não mentem. A taxas de juros de 25% ao ano, para ser conservador, nosso consumo além de nossos ganhos não vai durar tanto quanto durou nos Estados Unidos. O processo é simples: se hoje ganho cem reais por ano, mas gasto 200, preciso pegar 100 reais emprestados. Se tenho que pagar 25%, ou 25 reais, de juros ao ano, começarei o ano que vem com somente 75 reais na carteira, e uma dívida de 100 reais a ser paga. Isso sem contar que os cem reais do ano passado já não foram suficientes, e que não falamos em inflação... assim, mais cedo ou mais tarde iremos ao banco pedir mais dinheiro (quando as coisas apertarem mesmo), e eles nos dirão: - Não vai dar, agora queremos receber!
O governo que estimula o consumo é irresponsável, imoral, e não defende os interesses do povo. Por outro lado, o povo que não reflete sobre seus valores, sobre as consequências de seus atos, não merece nada melhor. Entretanto, é injusto culpar o povo quando não lhe é dada a oportunidade de ver, além da telinha, o iceberg à frente. Quem disse que "Nem Deus afunda o Titanic"? Sei não, mas deve ter sido alguém muito importante, afinal, muita gente acreditou. Entretanto, estamos de novo aceitando ser trancados no porão do navio, onde fazemos nosso carnaval, enquanto "eles" guiam nossos destinos...
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